19.1.14

Blanche 44: E comeram o cão

O enfermo hóspede de Blanche continua o relato visceral: neste quase verão, a chuva esteve persistente, ora brava e rápida, ora fina e gelada, incomodando os meninos perdidinhos. Nas tempestades elétricas, onde raios e trovões pareciam digladiarem-se constantemente, o medo sobrepunha-se ao desconforto.
Muitas madrugadas gélidas e encharcadas passadas ao pé de grandes árvores, impossibilitaram o sono dos demais. Ele próprio vivia apenas em sobressaltados cochilos devido à inquietante dor, pela falta de devido repouso.
Abrigos ruins, urdidos com meras folhas de palmeiras, o aperto da fome pela ausência de caça, os intensos e constantes gemidos do líder, deixavam o grupo cada vez mais lúgubre.
A dificuldade em fazer fogo era imensa, na falta da providencial pederneira. Poderiam inclusive, assar bananas verdes, pois há algumas moitonas de bananeiras à beira do regato, de quando em quando. 
Evitando ataques dos algozes mosquitos, carrapatos, formigões e marimbondos, untavam-se em argila bem espessa, para seguir arrastando o ferido. Foram perdendo os adornos, inclusive o sagrado dente de suçuarana que carregam no septo nasal.
Túnicas, tangas, diademas, pulseiras e colares, assim como os brincos de penas, foram extinguindo-se pelas infindas trilhas sinuosas e escorregadias. A exaustão apenas permitia repor as obrigatórias e lindas tornozeleiras, trançadas com emplumação.
Sem veneno para a zarabatana, perdiam pequenos veados, capivaras, pacas, ouriços, macacos, quatis, gambás, peixes e muitas aves. Clavas improvisadas quase não surtiam efeito, devido à imperícia no uso.
Os frutos ainda estavam mal granados, de mal com eles, restando palmitos, cana de açúcar, coquinhos e jatobás, que por vezes, levavam consigo. O mel para o ferido, extinguira-se gradualmente. As cascas e raízes eram amargas e arranhavam a garganta, causando por vezes, dores abdominais.
Um pressentimento inexplicável acelerou a marcha tormentosa, ao primeiro som penetrante da flauta longínqua dos índios isolados. As contingências desalentosas embargavam o esforço ingente pela alegria, apesar da exuberância local.
Macacos de várias espécies faziam travessuras na copa das árvores, mães carregavam bebês às costas, saltando distâncias incríveis, liderados por um velho grisalho, dependurado em cipós. Avistando o quarteto, fugiam em ensurdecedora algazarra.
Pássaros agitados, de todas as nuances de cores, e de tamanhos diversos coalhavam o céu, com cantos dos mais variados timbres e entonações. Seus ovos nos ninhos eram chupados fervorosamente pela equipe esfomeada.
Um furinho com uma pedra, bem de jeito, na ponta do ovo, e a retirada das lasquinhas de cascas... delicado como quem cuida de neném. Então é só sorver, engolindo depressa para afugentar o mal gosto.
Certa manhã, com o grupo já em marcha, um rebuliço invadiu o esplendor selvagem do regato. O cão, em bravura, enfrentou sozinho um grupo de caititus, em sinfonia grotesca, enquanto os garotos se evadiam com a maca.
A brutalidade das cabeçadas, mesmo durando poucos minutos, rendeu-lhe rasgos medonhos. Alcançou seus donos exausto, pingando sangue; a judiação incomodou a ponto de ser sacrificado.
Num rompante, a clava atingiu-lhe providencialmente o crânio já vermelho... último grunhido selou os pormenores da catástrofe, enquanto estrebuchou por míseros segundos.
Amarfanhados e taciturnos, os meninos friccionaram estrategicamente um graveto até obtenção do fogo. Conseguiram um magro e repugnante churrasco fúnebre; em último e providencial auxílio canino, encontravam-se agora esfaimados.

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