7.1.14

blanche 27: A cunhãzinha

A dias, Blanche vem observando um voltinho feminino, alongado na ribanceira acima. Na madrugada, ela ouviu o latir dos cães, de enxoto, voltado para o poente. Talvez a mulher tentasse infrutiferamente, furtar alimento.
Ali existem diversas mini cavernas, escavadas a tempos por indígenas, e de quando em quando, aparece um  desenfreado bugre adolescente, desgarrado da reserva, anciado por feroz desbravamento.
Todos chegam furtivamente pelo trilho fininho, feito espinho de macaúba, usado a gerações em busca de caça na floresta densa. Em certos pontos é tão profundo, que chega a encobrir os joelhos, se olharmos de perfil.
Blanche carrega, exponencialmente, a fama de coiteira, assim como a avó, porém não é inteligente dar ciência a Tom, o agregado, sobre a estranha presença. Embora ele seja cafuzo, um meio-sangue de morenês fechada, Blanche preferiu aguardar sua descida à pradaria, para fincar contato.
Aproximou-se a uma distância segura, com alimentos à vista, numa urupema, pois é errôneo considerar a floresta uma dispensa a céu aberto. Insetos, raízes, cascas de árvores e castanhas de palmeiras, compõem a dieta dos foragidos, quando não caçam pássaros.
Água e frutos são escassos, a ponto de se ter que lamber as gotas de orvalho nas folhas das plantas, antes do arrebol. A uivante cruviana, que sopra bem antes do cantar do galo, enregela a carne e os ossos de quem tenta dormir ao relento.
Aos poucos, houve o êxito. Blanche entende perfeitamente o linguario da cunhã (que aparenta quatorze anos), devido ao bilinguismo de sua mãe e avó. O difícil é se fazer entender, pois deixou de praticar a enroladinha fala índia.
Com auxílio de gestos, atinou que o errante marido índio (isolado) da cunhã, após roubá-la de tocaia na tribo, sem aranzé, macerava-a ininterruptamente no relho, onde urrava internamente e se encolhia, as cicatrizes se alastravam. 
Enquanto o sangue porejava, engolia e regurgitava a prantina, tantas vezes, a ponto da mesma secar em suas entranhas. Dor atrevida. Viviam bem afastados da grande aldeia, onde ele a mantinha deliberadamente reclusa.
Pelo prolongamento das mamicas, cujos mamilos se aproximavam do umbigo, Blanche notou que houve recente parição. A cunhãzinha confessou ter sacrificado friamente a criança, herança daquele demônio.
Fugira ainda mojando, e embrenhada na mata a semanas, sem repouso, recebeu precocemente as dores da prenhez, turvas feito enxurrada forte, julgou inclusive estar doente do estômago. 
Deu cria àquele "vermezinho" miúdo, vivo, rasgado dela, macho! Estrangulou-o em instantes, e cobriu o corpinho com pedras, sem carinho. Seguiu viagem rumo ao nascente, em busca de abrir brecha para a vida.
Retornar à aldeia seria perigoso, mesmo empinada em sua solidão deveras robusta, pois numa montoeira de brabezas, os aldeões acreditariam que poderia lhes levar terríveis maldições.
Após convencê-la a descer à cabana, blanche instalou-lhe uma rede ao alpendre; não é seguro botá-la de dentro. Pela manhãzinha, serviu-lhe a mistura de farináceos socados na carne seca (paçocada) com  bananas e garapa fumegante, escaldada dum talho de rapadura.
Anunciou num jorro, a breve chegada de Nick, seu cunhado. Ele informa que Helen, a pensioneira, almeja uma abnegada ajudante para sua funcionária (amigada) Emily, pois a freguesia aumenta. 
O que Nick fez questão de omitir à Blanche, é que Helen, a pedidinho miúdo da clientela, pretende formar um plantel de raparigas, e montar uma casela (inferninho) do outro lado do atrevido regato chorão. 
A dupla passou a semana fornecendo lições básicas à selvagem garota, para soltá-la à civilização. É certo que Riolama não passa de um arruamento minúsculo, contudo civilizatório. 
Lhe ensinaram algumas palavras-chave, posturas sutis, afazeres domésticos elementares. Temerária, todavia determinada, a pobre absorvia feito esponja, enquanto a carne tremia nos treinos. 
Entregue ao fogão, expeliu uma comida (feia) com aspecto estranho, denunciando má higiene. Nick negaciou, banhou em pimenta, engoliu, teatrizando boa cara, guerra abusiva ao estômago, numa fisgada vaga. 
No sábado, costumeiramente, Nick declinou à planície, e foi logo campear por Helen. Ao primeiro barrado de luz no horizonte domingueiro, blanche levou a cunhã a uma veredinha magra, que os gatos do mato talharam. 
Ela leva, pela perambeira, até os terreiros da vila, onde a menina será aguardada por sua futura patroa. Vai deslizando as nádegas, ninada de vento e de mãos vazias, somente com ornamentos e a túnica indígena doados graciosamente por Blanche. 
Nick batizou-a “Noruega”, Blanche estranhou. Ele informou ser devido a um local distante, também com indígenas, compridinho e fino (tipo uma lagarta com a cabeça voltada para o sul), de paredão a olhar sempre o oeste, clima malévolo, onde se passa fome. Ouviu do novo ferreiro de Willy, muito sofrido e culto, emigrado de lá.

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