18.3.14

Blanche 50: Escarificação

A tempos, o persistente indiozinho vem amolando a paciência de Tom e Nick, os dois a quem ele se apegou neste mundo novo. Num chamado quase onipresente, solicita agudizante auxílio na execução de sua tatuagem sagrada. 
É hábito intrínseco à tribo, após a grande caçada, os púberes passarem por um comovente ritual de escarificação, onde uma figura, geralmente de animal silvestre, é marcada num local estratégico do corpo.
Ele espera transformar a cicatriz da perna fraturada numa obra de arte corporal, diminuindo assim o estigma de estar manquejando e consequentemente cumprir com a conduta ancestral deste povo continente. Sua paixão pelo intento o faz pronunciar a falazinha indígena em sorriso de lágrimas mordiscadas.
Para tal, necessita alguém com dons invulgarmente artísticos para criar uma deslumbrante e única figura, e um executor de pungente sangue frio, pois a técnica consiste em esculpir a imagem na pele viva, com instrumento cortante.
Através de uma formosa escarificação, atrai-se respeito de companheiros e olhares do sexo oposto. Durante o processo de ablação da pele, a dorzinha crônica e lancinante fará com que desmaie e acorde diversas vezes, e perca grande quantidade de sangue, todavia encontra-se municiado com uma coragem arreganhada.
Após cessar a ciumeira irrivalizável e quase irracional, Nick volta ao discernimento e resolve amaneirar a tão sonhada prática estranha e transbordante em atroz crueza.
Esta cultura ádvena o fascina, afinal! Ele se maravilha, se questiona, se assusta; pergunta-se e não vê respostas límpidas nesta viagem atemporal sobre o universo da aldeia estampado no arguto indiozinho. 
Na embrenhada reserva se vive como nos primórdios, os silvícolas contam com as forças da natureza para a subsistência diária: recolecção, pequenos rebanhos, caça/pesca, permacultura.
A exuberância da vida comunitária: os ritos de passagem e de cura; as celebrações festivas; o animismo e confecção de totens; as noturnas danças circulares típicas em volta duma sacra fogueira. Todo este primitivismo "fotografado" por ele através dos minuciosos relatos do garoto, suscita incredulidade mesclada a assombro.
Não apenas uma vida desarmada de qualquer luxo civilizado, contudo uma vida plena, feliz, digna. A divisão social do alimento, de teto, das dificuldades, retira o espinhoso fardo duma existência insegura e carente em acumulação de bens.
Este espelho da vida civilizatória: a estada na montanha dos caprinos, não fez do menino alguém repartido, titubeante com seus valores. Numa personalidade refrescante, ele almeja seu mundo tradicional em detrimento da existência moderna, considerando a possibilidade da coexistência de ambas culturas.
Nick, meio psicagogo, numa rajada de sentimentos, tem a cabeça girando em dúvidas existenciais e o coração espremido com as atrocidades praticadas contra este povo, considerado bárbaro. A barbárie, na verdade, vem do "homem culto" contra ingênuos seres quase infantes.
A técnica de escarificação é realizada na aldeia com lâmina de pedra polida, todavia Tom fará uso de sua baioneta, que manipula com destreza. Blanche prepara um fermentado de frutos e cereais para alcoolizar o rapaz, amenizando o flagelo.
O desenho é fixado no local da pele com o maçarento urucum. Ao final do primoroso trabalho, uma queloide controlada se formará, criando uma graciosa estampa com aspecto de alto relevo, portanto tridimensional.

2 comentários:

  1. Cristina, arrepiada aqui, com a descrição de tamanha coragem para se ferir assim, deliberadamente. Tomara que dê tudo certo para o indiozinho. Tantos costumes, coisas inimagináveis existem por esse mundão de meu-deus, né?
    Aguardando o próximo capítulo.
    Beijo.

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  2. Olá, Lucinha!
    Esses rituais de auto afirmação no grupo de convívio valem qualquer sacrifício.
    Como eles não possuem bens materiais para expor à comunidade, criam diferenciações que ultrapassam gerações.
    No fundo, a moral da história é a mesma que o pavão utiliza, gastando tanta energia naquela cauda fantástica.
    Fico grata com seu carinho
    Outro beijão procê.

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